Prāṇāyāma:.
definição e fisiologia de um elo central do Hațha Yoga.
Não se pode definir prāṇāyāmas apenas como técnicas respiratórias de Yoga, pois há outros critérios para que uma prática seja classificada como prāṇāyāma. Para se entender isso é necessário integrar conceitos tradicionais com a compreensão da fisiologia dos prāṇāyāmas, o que faremos a seguir.
“...apenas através de uma respiração profunda e plena é que se pode conseguir energia para uma vida mais espirituosa e espiritual.”
(Alexander Lowen)
A grande ênfase que recai hoje sobre as práticas dos āsanas (posturas) encobre a importância de outras técnicas ou mesmo dos propósitos mais elevados do Yoga. Os prāṇāyāmas estão entre as práticas mais importantes, tendo uma relação com a consciência que vai além da simples prática de técnicas respiratórias. Mais do que técnicas, prāṇāyāma é uma condição a que se chega, em que cessa a atividade respiratória automática e prevalece um estado de profunda estabilidade associado à regularização do prāṇa: uma força sutil que rege em nós inúmeros fenômenos psicofísicos. Neste estado a instabilidade da atividade mental tende a se reduzir, favorecendo uma experiência de integração psicofísica.
Podemos então compreender que os objetivos de prāṇāyāma são espirituais, ao se utilizar a respiração como veículo de transformação em todas as instâncias do ser-humano. Neste sentido pode parecer estranho para algumas pessoas enfatizarmos conhecimentos científicos pertinentes à fisiologia da respiração e dos prāṇāyāmas que parecem estar muito aquém de suas dimensões espirituais. Contudo, na perspectiva do Yoga científico e até mesmo no pensamento oriental de uma forma mais ampla, a espiritualidade não só não exclui a ciência, como pode encontrar nela embasamento para aprofundar suas metodologias que buscam experiências de unidade.
Antes de compreender-se a fisiologia dos prāṇāyāmas é necessário que se fique claro o significado deste termo partindo de outra linha de investigação, que podemos chamar de literária. Segundo o Yoga Kośa, editado por Digambarji e colaboradores (1996), há oito conceitos distintos para o termo prāṇāyāma baseados em importantes manuscritos de Yoga, dentre os quais os mais importantes são:
“-ausência de inspiração, bem como de expiração; uma pausa na respiração, a qual pode decorrer de um processo deliberado de curtas ou longas inalações e exalações. Pode advir repentinamente enquanto tanto a inspiração quanto a expiração estiverem em progresso.”
“-um inteiro processo consistindo de inspiração, expiração e suspensão da respiração em diferentes modos e diferentes medidas.”
“-inspiração, expiração e suspensão da respiração durante a prática de Yoga.”
De todas as referências literárias que trazem estas definições, certamente a mais notória e significativa advém do texto de Patañjali - os Yogasūtras. Nesta obra o conceito de prāṇāyāma é pela primeira vez estabelecido numa sequência de aforismos que definem esta condição (Taimni, 1996). Estes versos são imediatamente posteriores aos que definem o āsana e estão ordenados conforme as citações seguintes:
II-49) “Isto tendo sido realizado, (segue-se) prāṇāyāma, que é a cessação de inspiração e expiração.”
II-50) “(Consta de) modificação externa, interna ou suprimida; é regulado por lugar, tempo e número (e se torna progressivamente) prolongado e sutil”.
II-51) “O prāṇāyāma que vai além da esfera do interno e do externo é a quarta (variedade).”
II-52) “A partir disso desaparece o que encobre a luz.”
II-53) “E a mente fica preparada para a meditação.”
Esta sequência de aforismos deixa claro que o controle do alento segue o controle da postura, pois os sūtras anteriores (II- 46 a 48) são os que definem o āsana (postura). Uma vez dominada a postura o corpo deixa de ser um fator de perturbação e o praticante pode então voltar-se para uma percepção plena e consciente da sua atividade respiratória e de sensações sutis a ela associadas. Aprofundando-se nesta experiência é possível chegar-se a um estado de pausa respiratória consciente e confortável, que condiz com a própria definição de prāṇāyāma segundo o sūtra II-49 (“cessação de inspiração e expiração”). Compreender isto é de suma importância, pois qualquer técnica a que chamemos de prāṇāyāma deve ter como objetivo levar o praticante a tal estado. Assim, deve ficar claro que prāṇāyāma não é hiperoxigenação, nem hiperventilação e nem mesmo qualquer técnica que desgaste o praticante.
Segundo o sūtra II-50 há três modos de se chegar à pausa respiratória: após a inspiração, após a expiração ou simplesmente a qualquer instante, indiferente do momento. Um quarto modo (caturtha), descrito no sūtra seguinte (II-51) é aquele que transcende por completo os movimentos da respiração, quando não só o alento externo é suprimido, como também o prāṇa encontra-se sob completo domínio do praticante. Após este controle do prāṇa o praticante entra em íntimo contato com a luz, termo usado no aforismo II-52 para designar aspectos que transcendem o “prânico”. Enfim, o sūtra II-53 deixa claro que tal estado deixa a mente preparada para a concentração, para as práticas puramente mentais do Yoga, que são abordadas no capítulo seguinte do texto de Patañjali.
Neste manuscrito, contudo, não há menção a quaisquer técnicas específicas denominadas prāṇāyāmas. Os primeiros textos que descrevem técnicas denominadas prāṇāyāmas são bem posteriores aos Yogasūtras, pertencendo à tradição literária do Hațha Yoga, que de modo geral dá uma ênfase tão grande à estas práticas respiratórias que autoridades como Alicia Souto (2009) consideram os prāṇāyāmas centrais em suas metodologias, como um elo de conexão entre o corpo e a consciência.
Os textos mais importantes do Hațha Yoga são, por ordem cronológica, o Gorakṣaśataka, o Hațhapradīpikā e o Gheraṇḍasaṁhitā. As principais técnicas respiratórias descritas nestes textos são: sūryāṅgābhyāsa ou sūryabhedana, candrāṅgābhyāsa ou candrabhedana, bhrāmarī, nāḍīśuddhi, sītkārī, śītalī, ujjāyī, mūrcchā e bhastrikā. Outras técnicas que envolvem manipulações respiratórias, tais como kapālabhāti, simhāsana e uḍḍiyānabandha não são classificadas como prāṇāyāmas. A primeira é um kriya (técnica de purificação), a segunda é um āsana (postura) e a terceira é um bandha (trava). Os bandhas são associados aos prāṇāyāmas para potencializar seus efeitos.
Em termos fisiológicos, devemos lembrar que todos os prāṇāyāmas tem os mesmos efeitos gerais, mas cada prāṇāyāma tem seus efeitos específicos. Dentre os efeitos gerais cabe salientar que os mais evidentes estão relacionados à atividade respiratória, tais como redução da frequência respiratória em níveis muito significativos, permitindo também reduções da ventilação, apesar do aumento dos volumes inspirado e expirado. A ventilação é a quantidade de ar que entra e sai dos pulmões a cada minuto. Numa situação convencional, ela pode ser de 7,5 litros, determinada por um volume corrente (ar entrando e saindo a cada respiração) de 0,5 litro multiplicado por uma frequência média de 15 respirações por minuto. Um praticante experiente de prāṇāyāma pode lograr reduções muito grandes da frequência respiratória, como constatado por Miyamura e colaboradores (2002), que monitoraram um praticante japonês que respirou 60 vezes em uma hora, ou seja, ele manteve a frequência de 1 respiração por minuto. Neste caso, mesmo aumentando muito os volumes inspirados, ainda assim a ventilação diminui. Estes dados do estudo de Miyamura ainda são modestos quando comparados com achados de grandes yogīs indianos.
De fato, qualquer redução muito significativa da ventilação só pode ser sustentada por longos períodos se houver concomitantes reduções do VO2 (consumo de oxigênio), relacionadas a um padrão hipometabólico, quando o organismo está “gastando” pouca energia. Assim, prāṇāyāmas podem induzir a estados hipometabólicos que estão associados a uma condição serena da mente, e isto nos leva a compreender fisiologicamente e psicologicamente o valor dos prāṇāyāmas como parte preparatória para a prática meditativa. Aliás, já foi evidenciado em estudos citados por Cardoso (2005) que o estado meditativo profundo é muito mais rápida e eficazmente atingido quando a técnica utilizada inclui alguma manipulação respiratória. Este é o principal valor dos prāṇāyāmas, inerente a todas as técnicas aqui citadas quando praticadas com critérios adequados.
Outro aspecto geral treinado nos prāṇāyāmas é o controle das proporções entre inspirações (pūraka), pausas (kumbhaka) e expirações (recaka), mencionado em textos de Hațha Yoga. O treino mais básico do ritmo respiratório com vistas às práticas de Yoga é a manutenção do padrão 1:2. Isto significa que para cada tempo de inspiração (pūraka), devem seguir-se dois tempos de expiração (recaka). Com um pouco mais de treino, o praticante começa a executar as pausas (kumbhaka), que podem aumentar progressivamente até se chegar ao ritmo sugerido de 1:4:2, quando as expirações duram o dobro do tempo das inspirações e as pausas duram o dobro do tempo das expirações. Os textos chegam a citar períodos de até 20:80:40 tempos para as inspirações, pausas e expirações respectivamente, o que pode significar frequências respiratórias inferiores a meia respiração por minuto, com períodos de pausas de mais de um minuto.
Retenções assim prolongadas podem gerar muito desconforto e inquietação se mal aplicadas, opondo-se aos propósitos do Yoga, portanto os hațhayogīs desenvolveram critérios importantes de segurança e eficácia na execução dos prāṇāyāmas, preconizando a adoção das pausas apenas com os pulmões cheios (Ābhyantarakumbhaka) e necessariamente acompanhadas da travas (bandhas), sendo a trava da garganta (jālandhara) compulsória. Hoje conhecemos boas justificativas fisiológicas para seguir estas “regras”. A pausa respiratória com pulmões vazios é mais arriscada, levando a alterações mais significativas ou mais precoces da pressão arterial e da própria sensação de desconforto respiratório, não constando assim no conjunto de procedimentos do Hațha Yoga. Já a adoção do jālandharabandha como componente essencial do treino de pausas prolongadas se deve provavelmente ao barorreflexo: um mecanismo reflexo cardiomoderador e redutor da resistência vascular periférica que pode ser acionado pela compressão da região carotídea durante a trava da garganta. Este mecanismo reflexo pode ser um importante fator na viabilização de um estado de tranquilidade cardiorrespiratória, que favorece a tranquilização da mente de acordo com os propósitos dos prāṇāyāmas e dos sistemas de Yoga de um modo geral.
Além dos objetivos e efeitos gerais, contudo, há também os objetivos e efeitos específicos de cada prāṇāyāma, que podem definir aplicações destes em distintas situações. Um exemplo é o sītkārī, em que se fazem inspirações bucais com os dentes cerrados no intuito de refrescar o organismo, e sabemos que de fato o ar inspirado pela boca chega mais frio aos pulmões desde que a temperatura externa esteja menor do que a orgânica, que oscila em torno de uma média de 36ºC. Assim sendo, o sītkārī tem indicações, como o caso de uma febre, bem como contraindicações, como o caso de um resfriado. O śītalī tem a mesma característica e neste caso as inspirações também bucais ocorrem através de um túnel, em forma de “U”, feito com a língua.
Outro exemplo de efeitos específicos dos prāṇāyāmas é a diferenciação feita entre candrāṅgābhyāsa (respiração lunar) e sūryāṅgābhyāsa (respiração solar), de acordo com a nomenclatura do Gorakṣaśataka. A respiração lunar consiste em inspirar-se pela narina esquerda e expirar-se pela direita, ao passo que a solar consiste no procedimento oposto. Segundo o conhecimento tradicional, as inspirações pela narina esquerda tem efeitos mais calmantes e pela narina direita efeitos mais estimulantes. Alguns estudos preliminares (Keuning, 1968; Raghuraj et al, 2008) sugerem diferentes efeitos fisiológicos dependendo da narina usada para se inspirar e expirar, havendo uma tendência a confirmar a perspectiva tradicional, mas são dados ainda inconclusivos, não havendo evidências claras de que inspirar pela narina direita (sūryāṅgābhyāsa) aumente a atividade metabólica orgânica, até porque isto iria contra os objetivos gerais dos prāṇāyāmas, porém este efeito estimulante pode ser uma referência à condição mais desperta da mente, ou simplesmente consequência do sugestionamento gerado por este simbolismo.
A técnica respiratória mais complexa e polêmica, contudo, é o bhastrikā, que é classificado como prāṇāyāma e que muitos entendem ser apenas uma hiperventilação feita com esforço inspiratório e expiratório. Entendo que este tipo de manobra não é prāṇāyāma, por não trazer os efeitos gerais inerentes a tais técnicas. Além disto, basta ler as descrições mais notórias do bhastrikā em textos como o Gheraṇḍasaṁhitā e o Hațhapradīpikā (Souto, 2009) para se compreender que este prāṇāyāma, bem como todos os demais, também inclui treinos de pausas respiratórias com inspirações e expirações lentas e controladas. A particularidade do bhastrikā, contudo, é a execução do kapālabhāti (sucessivas expirações vigorosas) precedendo o treino do kumbhaka (pausa respiratória confortável após inspiração lenta e profunda e seguida de expiração ainda mais lenta). Isoladamente, kapālabhāti é um kriyā, uma técnica de purificação que desobstrui as vias respiratórias superiores, mas quando associado a outros procedimentos como as pausas passa a fazer parte de um prāṇāyāma. Hoje também conhecemos os fundamentos fisiológicos da prática do kapālabhāti precedendo o período de retenção do ar. As repetidas expirações forçadas eliminam grande quantidade de CO2 e sabemos que a elevação da concentração sanguínea deste gás é o principal fator metabólico que nos leva a respirar, portanto, reduzir sua concentração no sangue significa reduzir a própria vontade de respirar, induzindo os praticantes a pausas respiratórias mais prolongadas e confortáveis. Esta é a racionalidade da combinação de procedimentos que caracteriza o bhastrikā.
Um último tópico específico sobre uma técnica que gera polêmicas trata do ujjayī prāṇāyāma. Isto se deve ao fato de que abordagens contemporâneas mundialmente populares que derivam da linhagem de Kṛṣnamācārya trabalharem com o conceito de associar técnicas num mesmo momento (postura, controle respiratório, travas e foco) em práticas que podem ser dinâmicas e vigorosas, usando na realização das posturas e movimentos uma manipulação respiratória que consiste em reduzir a vazão à passagem do ar no nível da glote e talvez no interior da laringe, produzindo um ruído suave semelhante ao som do mar. Esta manobra tem sido corriqueiramente chamada de ujjayī prāṇāyāma, mas ela isoladamente não deveria ser considerada sequer um prāṇāyāma, pois o que caracteriza tais técnicas é o treino das pausas respiratórias precedido e sucedido por distintas formas controladas de executar as inspirações e expirações. A confusão parece advir do fato de textos como o Gheraṇḍasaṁhitā e o Hațhapradīpikā mencionarem esta manobra do “ruído na garganta” como parte do conjunto de procedimentos que caracteriza o ujjayī, mas a descrição da técnica completa inclui muitos outros aspectos, que nestas abordagens contemporâneas costumam ser ignorados, sendo isto agravado pelo fato de que a única referência literária tradicional que poderia embasar a designação de apenas uma manobra na garganta como ujjayī deriva de um suposto texto sem qualquer cópia que teria sido estudado por Kṛṣnamācārya e depois se perdera, inexistindo assim possibilidade de confirmação hoje do que estaria ali descrito como ujjayī.
Compreender exatamente o que se pratica e por que se pratica é fundamental para que haja o direcionamento adequado das técnicas de Yoga e, em particular os prāṇāyāmas.
Referências Bibliográficas:
Cardoso R. Medicina e Meditação: Um médico esina a meditar. São Paulo: MG Editores; 2005.
Digambarji et al. Yoga Kośa: The New Enlarged Edition. Lonavla-India: Kaivalyadhama SMYM Samiti; 1991.
Keuning J. On the nasal cycle. Int J Rhinol 1968 6:99-136.
Miyamura M, Nishimura K, Ishida K, Katayama M, Shimaoka M, Hiruta S. Is man able to breathe once a minute for an hour?: the effect of Yoga respiration on blood gases. Japanese J Physiol 2002 52(3):313-6.
Raghuraj P, Teles S. Immediate Effect of Specific Nostril Manipulating Yoga Breathing Practices on Autonomic and respiratory variables. Appl Psychophysiol Biofeed 2008 33(2):65-75.
Santaella DF, Devesa CR, Rojo MR, Amato MB, Drager LF, Casali KR, Montano N, Lorenzi-Filho G. Yoga respiratory training improves respiratory function and cardiac sympathovagal balance in elderly subjects: a randomized controlled trial. BMJ Open. 2011 May 24;1(1):e000085.
Souto A. A Essência do Hatha Yoga: Hatha Pradipika, Gheranda Samhita e Goraksha Shataka. Trad. Barbosa DT e Santaella DF. São Paulo: Phorte Editora; 2009.
Taimini, IK. A Ciência do Yoga: comentários sobre os Yogasutras de Patanjali à luz do conhecimento moderno. 3ª ed. Brasília: Teosófica; 2004.